Os microrganismos resistentes aos agentes antimicrobianos são considerados uma das ameaças globais mais graves da atualidade para a saúde humana. São responsáveis por uma elevada morbidade e mortalidade, além de serem um fardo económico. Para combater o aumento e proliferação destes microrganismos, temos de tomar diferentes ações com estratégias fiáveis e comprovadas e ferramentas inovadoras.

Responsável por cerca de 700.000 mortes anuais* no mundo inteiro, a resistência antimicrobiana tornou-se num tema de grande importância. Assim, a propósito da Semana Mundial de Uso Consciente de Antibióticos, a bioMérieux em parceria com a SaúdeOnline, entrevistou especialistas sobre a importância da prevenção da resistência antimicrobiana.

Qual é o impacto das resistências aos antimicrobianos em Portugal? Prevalência e custos económicos.

“Portugal mantém uma elevada prevalência de infeções associadas aos cuidados de saúde”

Quando estamos a falar de bactérias resistentes ao tratamento com antibióticos estamos a falar essencialmente de que bactérias?

Quando estamos a falar em bactérias resistentes, falamos essencialmente do grupo ESCAPE, nomeadamente o Enterococcus faecalis e o Enterococcus faecium, o Staphylococcus aureus, o género de bactérias Klebsiella pneumoniae e Acinetobacter baumannii e as Pseudomonas aeruginosa.

Quais são os dados de Portugal relativamente às infeções associadas aos cuidados de saúde?

Segundo os dados do estudo PPS [Point prevalence survey of healthcare-associated infections and antimicrobial use in European acute care hospitals] de 2016/2017, Portugal mantém uma elevada prevalência de infeções associadas aos cuidados de saúde – 9,1% versus uma média europeia de 6,5%, com uma incidência estimada de 5,9% versus 4,1% de média europeia. Dessas infeções associadas aos cuidados de saúde, mais de 30% são causadas por bactérias resistentes. Em 2015, estas infeções associadas aos cuidados de saúde por bactérias multirresistentes atingiram, em média, 66 pessoas e causaram três mortes diariamente.

Quais são as previsões para o período de 2015-2050 para Portugal relativamente às infeções associadas aos cuidados de saúde?

Segundo um relatório da OCDE, se não existirem medidas adequadamente implementadas, são esperados 16 mil óbitos por ano, 800 dias extra de hospitalização por 100 mil habitantes por ano e um gasto anual de 500 mil dólares por 100 mil habitantes relacionado unicamente com o tratamento das infeções associadas aos cuidados de saúde causadas por bactérias multirresistentes.

E como podemos combater o atual cenário das infeções associadas aos cuidados de saúde em Portugal?

Portugal é dos países que mais beneficia de uma política de investimento nesta área, sendo as medidas baseadas nas medidas de higienização das mãos, da higienização hospitalar e a efetiva implementação de programas de antimicrobial stewardship hospitalar as que apresentam os maiores benefícios.

Que desafios colocam as resistências a antimicrobianos ao laboratório de microbiologia? De que forma o laboratório de microbiologia contribui hoje para ultrapassar esses desafios?

O papel dos laboratórios de microbiologia é fundamental para detetar rapidamente os casos de bactérias multirresistentes. Fazer chegar essa informação rapidamente aos clínicos é crucial para o sucesso do tratamento, diz a microbiologista do Centro Hospitalar de Lisboa Central.

O que são os testes da suscetibilidade aos antimicrobianos/antibióticos?

São testes para saber se aquele microrganismo é sensível ou resistente a determinados antibióticos.

E qual é o papel dos laboratórios de microbiologia?

É no laboratório de microbiologia que se faz o isolamento e a identificação dos microrganismos que provocam as infeções e é também no laboratório de microbiologia que se faz o teste de suscetibilidade aos antimicrobianos.

Porque é crucial fazer chegar o mais depressa possível a informação apurada em laboratório ao médico assistente? Tanto do microrganismo que está a causar a infeção como do resultado dos testes de suscetibilidade…

Porque nos doentes que têm infeções graves, o médico começa imediatamente o tratamento com antimicrobianos de uma forma empírica, ou seja sem ter dados objetivos de qual é o microrganismo que está em causa e se é sensível ou não ao antibiótico que o médico decidiu prescrever. Assim, é crucial e crítico o laboratório fazer chegar essa informação o mais rápido possível ao médico, para adequar a antibioterapia ao doente que tem à sua frente.

Em meio hospitalar, como é possível promover uma utilização adequada dos antibióticos/antimicrobianos para que não surjam resistências?

É necessário que os laboratórios estabeleçam uma relação frutuosa entre si e os diversos serviços clínicos, particularmente com o Grupo Local de Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos, que por Lei todos os hospitais devem ter.

Também se devem reforçar as medidas de controlo de infeção hospitalar para que não haja disseminação cruzada dessas resistências entre os doentes.

Por fim, todos os laboratórios de microbiologia devem participar de maneira regular e consistente com a rede nacional de vigilância a resistências para podermos ter uma visão global do problema e podermos tomar medidas de controlo necessárias.

No momento atual, quais são os maiores desafios dos laboratórios de microbiologia?

Os desafios que se colocam ao laboratório de microbiologia são, em primeiro lugar, o laboratório ter capacidade para detetar todas as resistências aos antimicrobianos e nem todas as resistências são fáceis de detetar no laboratório. É preciso que o laboratório seja dotado de profissionais competentes e também de equipamentos e metodologias adequadas para detetar todas as resistências e elas não passarem despercebidas.

O segundo desafio importante é fazer com que essa informação que o laboratório obteve chegue ao médico assistente o mais depressa possível. Para isso é necessário que o laboratório se reorganize de maneira a disponibilizar um serviço durante um horário de funcionamento mais alargado de 12 ou, idealmente, de 24 horas por dia todos os dias da semana e encontre um método, de fazer chegar essa informação, o mais depressa possível, em tempo real de preferência, ao médico que está a tratar do doente, porque realmente não adianta muito o laboratório ter o resultado em uma ou duas horas se depois o médico que vai tratar o doente só vê esse resultado 12 horas depois. Este atraso pode ter efeitos nefastos no doente.

Existem várias formas de os laboratórios lidarem com estes desafios. A primeira é apetrechar-se com as novas metodologias que permitem obter esses resultados muito rapidamente. Atualmente, há uma diversidade enorme dessas metodologias no mercado, são quase todas baseadas em biologia molecular, e permitem ter um resultado no espaço de uma ou duas horas quando as metodologias tradicionais só permitiam isso em 24 a 48 horas.

O outro lado da questão é que estas técnicas de biologia molecular são muito rápidas, mas também são bastante mais caras do que as metodologias tradicionais, por isso têm de ser aplicadas com parcimónia e quando realmente são necessárias.

Qual o papel do PPCIRA para a implementação de programas de Stewardship?

O mais recente Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA) nasceu em 2013 e, segundo a médica de medicina interna veio capacitar os hospitais e os cuidados de saúde primários com conhecimento para a utilização assertiva dos antimicrobianos.

O que é o PPCIRA e qual o papel que desempenha no combate à resistência aos antimicrobianos?

O Programa de Prevenção e Controlo de Infeção e Resistência aos Antimicrobianos determina a obrigatoriedade da existência de programas de apoio à prescrição antimicrobiana em todas as estruturas de saúde, sejam elas hospitalares ou do universo dos cuidados de saúde primários.

Ao utilizar as estruturas locais, os grupos coordenadores locais de prevenção e controlo da infeção e resistência aos antimicrobianos para a implementação desta estratégia e para apoio à prescrição, o PPCIRA criou uma verdadeira rede de conhecimento e competência de âmbito nacional capaz de intervir de forma efetiva no terreno, na melhoria que se pretende que seja sustentada, na qualidade de utilização destas poderosas, mas simultaneamente frágeis, armas terapêuticas que todos temos a obrigação de preservar já no presente e para as futuras gerações.

Qual o valor do diagnóstico microbiológico rápido e as guias de um tratamento mais direcionado e assim a preservação do atual arsenal terapêutico?

A rapidez no diagnóstico microbiológico é fundamental para um ajuste de antibioterapia o mais rápido e o mais eficazmente possível.

O que permitem fazer as novas metodologias de biologia molecular rápidas?

A introdução das metodologias de biologia molecular rápidas vai permitir dois passos fundamentais.

Por um lado, vai permitir fazer o screening da colonização de doentes por bactérias portadoras de genes que conferem resistência a um determinado antibiótico e, por outro lado, vai assegurar uma identificação rápida de agentes infeciosos, muitas vezes em cerca de uma hora.

Tudo isto culminará na sinalização de doentes portadores de microrganismos multirresistentes e na atuação ajustada da terapêutica antimicrobiana, ou antiviral, pela identificação do agente envolvido

Que desafios trazem estas novas metodologias para o dia-a-dia das unidades de saúde?

Muitos são os desafios futuros e incluem a manutenção de um fluxo bidirecional de informação entre o laboratório e as unidades de internamento, com reports de resultados 24 horas/sete dias por semana e ainda mais com a agilização de programas de antimicrobial stewardship com evidências de custo, evidências de benefícios da utilização de metodologias rápidas em prol o doente.

É, de facto, muito inovadora esta nossa Era porque o urge de responder às necessidades de um ajuste de antibioterapia o mais rápido e o mais eficazmente possível, tudo isto para culminarmos com uma prescrição adequada de antibioterapia e para libertar o doente mais rapidamente de instituições hospitalares para o âmbito domiciliário.

Porque aparece a resistência bacteriana? O que são mecanismos de resistência antimicrobiana?

Segundo a Dra. Helena Ramos, a utilização excessiva e inadequada dos antimicrobianos é o pilar fundamental no aparecimento das resistências a este grupo de fármacos.

Qual é o principal fator que promove o aparecimento da resistência antimicrobiana?

São conhecidos múltiplos fatores para o aparecimento da resistência bacteriana, mas se identifica como o principal e o mais relevante o uso excessivo e inadequado dos antimicrobianos.

Quais são as estratégias das bactérias para neutralizar a ação dos antimicrobianos?

As bactérias apresentam numerosas estratégias para neutralizar a ação dos antimicrobianos, como produzir enzimas que os vão inativar, podem também modificar ou substituir o local onde estes antibióticos se vão ligar, ou então procedendo a rearranjes estruturais ao nível da sua parede, diminuindo a permeabilidade desta aos antimicrobianos.

Existe ainda outra estratégia que passa por utilizar os canais de saída dos produtos nocivos do metabolismo destas bactérias para expulsar o antibiótico reduzindo assim a concentração do antibiótico no seu interior.

Todas estas estratégias são conhecidas como mecanismos de resistência.

Qual é o papel do microbiologista nos programas de uso apropriado de antimicrobianos?

A especialista em Patologia Clínica da Unidade Local de Saúde de Matosinhos fala do papel deste documento no conhecimento do ambiente microbiano, das resistências existentes e no apoio à decisão clínica.

O que são cartas microbiológicas hospitalares e de comunidade e para que servem?

Estas cartas permitem conhecer os agentes mais frequentes e o seu comportamento perante os antimicrobianos e são muito importantes para a escolha da antibioterapia empírica.

E qual o papel do microbiologista nos programas de uso apropriado de antimicrobianos?

Em primeiro lugar, o microbiologista deve elaborar estas cartas microbiológicas hospitalares e da comunidade.

Em segundo lugar, o microbiologista deve promover o antibiograma seletivo, relatando só nos seus laboratórios microbiológicos os antibióticos de primeira linha e as resistências observadas.

Em terceiro lugar, o microbiologista deve selecionar um conjunto de métodos de diagnóstico rápido, que permitam a identificação das bactérias, a deteção de mecanismos de resistência e também de diagnóstico de infeções víricas no sentido de evitar o uso excessivo de antibióticos.

Por último, deverá promover uma boa comunicação com a clínica. Pode ser presencial, e as reuniões presenciais devem ser utilizadas sobretudo para os cuidados intensivos e intermédios, ou através de um telemóvel da instituição em que poderá esclarecer em todo o momento qualquer dúvida e mesmo através do processo clínico eletrónico, utilizando o diário para colocar a informação clínica relevante e até sugerir o ajuste da antibioterapia quando ela é desadequada.

*Tackling drug-resistant infections globally: final report and recommendations, The review of antimicrobial resistance chaired by Jim O’Neill, 2016